Líderes cristãos contam testemunhos decorrentes de uma teologia discriminatória.”Na Igreja Evangélica não há racismo; afinal, todos são iguais perante a Deus”. Tal pensamento, pregado por pastores e aceito como realidade por evangélicos, tem entrado em confronto com a prática do amor ao próximo, reconhecido como o segundo mandamento de Jesus. A promoção de conceitos racistas como a teoria do branqueamento social [assimilação dos padrões brancos para se afirmar socialmente] e a conseqüente negação da própria identidade, após anos de escravidão, tem sido reproduzidos por comunidades evangélicas. “Como somos imitadores de Cristo, às vezes nossa imitação acaba sendo uma sombra de um arremedo e se transforma em hipocrisia dada às máscaras que usamos para tratar com afrodescendentes dentro da igreja”, observa o pastor Márcio de Souza, diretor do Seminário Teológico Casa do Oleiro, a respeito do que ele considera “um racismo velado, por causa de uma perspectiva cristã de que Deus não faz acepção de pessoas”.Declarados como “paraísos raciais” – termo empregado por Marco Davi de Oliveira no livro A Religião Mais Negra do Brasil -, os ministérios de maneira geral, incluindo os considerados mais atraentes aos negros por fatores como a valorização do “eu” a partir do batismo no Espírito Santo, aprimoraram o sentimento de rejeição no afrodescendente, uma vez que se dá no âmbito espiritual. “Certa vez visitei uma igreja que tem um culto para negros e pobres antes do culto ‘oficial’ da igreja. Senti repulsa, raiva e ferido enquanto negro e pobre também. As igrejas perpetuam o racismo, quando separam de um lado da igreja negros e do outro lado brancos, quando ela não valoriza o negro afirmando, por exemplo, que a marca de Caim era a negritude. Isso passa a idéia de que ser negro é pecado”, afirma Souza.Negros no altar
Lábios carnudos, orelhas pequenas, nariz achatado, cabelo crespo e pele negra. Para a pastora Daniela Zeidan, da Igreja Renascer em Cristo, o biotipo negro aliado ao gênero expuseram um fator duplo de discriminação. “Quando as pessoas me veem ministrando a Palavra de Deus é como se elas entrassem em conflito com seu próprio preconceito. Já ouvi vários comentários do tipo: ‘- Olha ela é negra, pastora, mas conhece bem a Bíblia’, conta a pastora. Zeidan também narra uma experiência que viveu enquanto não exercia o pastorado. “Uma vez quando eu usava tranças, uma irmã chegou até mim e disse que sentiu um ‘peso’ [espiritual] no meu cabelo. Ou seja, como trança é um penteado afro, logo tudo que é da África é demonizado”. Detectar o racismo na Igreja pode ser dificultado na medida em que lideranças e membros não assumem tal problemática num ambiente de comunhão e aparente aceitação mútua. No entanto, um dos indicadores são os raros postos ocupados pela etnia na liderança máxima.“Numa ocasião estava havendo uma distribuição de cestas básicas numa igreja ‘elitista’ aqui de Niterói (RJ) e quando o pastor local ‘negro’ chegou, uma mulher que estava esperando a bolsa disse: ‘Ué, pode ter pastor negro aqui nessa igreja?’ detalhe, os únicos negros daquela igreja eram o pastor e o ministro de música”, conta Souza. A passividade das denominações em retratar o racismo, apontada por Zeidan como fruto da omissão da Igreja no período da escravidão, pode ser observada na sociedade eclesiástica como reflexo de uma hierarquia preconceituosa, na qual é preciso que o negro se imponha numa constante necessidade de “mostrar algo (…) e que pode atingir um nível mais alto, uma cultura diferente” (Souza, Neuza Santos – Tornar-se Negro). “Você vê o homem negro e a mulher negra há anos dentro da igreja e não têm oportunidades, a não ser na diaconia, na portaria, na cantina, no coral, no departamento social. (…) Raramente ocupam posições de liderança”, ressalta Zeidan.
Ser negro
Com a pretensão de valorizar a etnia, tendo em vista fatores que corroboram para o sentimento de rejeição nos negros como associação em púlpitos da cultura afro a demônios, o teólogo Walter Passos criou a Comunidade Pan-Africanista Tzion, em Salvador (BA), dirigida por negros e baseada numa “teologia preta”. “Sempre desafio os teólogos e historiadores para citar personagens brancos nos escritos conhecidos como Antigo Testamento. (…) Há um desconhecimento geográfico dos fatos bíblicos. A maioria dos leitores não sabe que o Jardim do Éden foi na África e os primeiros habitantes do planeta foram pretos. (…) O racismo das igrejas omite a verdade cientifica e bíblica”, interpreta Passos.
Presidente do CNNC (Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos), Passos debate o racismo em igrejas evangélicas e católicas. “A desigualdade étnica está nas igrejas cristãs e suas teologias eurocêntricas”, declara o líder que enxerga como um dos maiores problemas de tais congregações, a “negação das raízes africanas quando os pretos e pretas no Brasil se tornam membros das igrejas. Pensam que aceitar o Evangelho é aceitar as idéias de branquitude do cristianismo americano no Brasil”. Também preocupado com a sensação de pertencimento da população negra nas igrejas evangélicas e o combate ao racismo, José Guido, diácono da Igreja Adventista da Promessa e profissional de Relações Pública, acredita que uma comunidade exercida somente por negros “pode ser positiva para a afirmação da cultura, assim como para a elevação da auto-estima de seus membros. Mas é uma resposta igualmente excludente em relação a pessoas de outras etnias”.Com uma membresia cujo número chega a 70% de negros, sendo o restante formado inclusive por orientais, a Igreja Apostólica Renovação Cristã de Alphaville (IARCA), que no início, há cerca de cinco anos, era constituída sem pretensão por negros em sua totalidade, tem, segundo o apóstolo Agnaldo Campos, causado desconforto em outras denominações. “Pastores têm proibido os seus membros de visitarem a nossa Igreja, talvez pelo fato de que a maioria dos visitantes são bem recebidos e acabam ficando. A diferença é que deixamos o Espírito Santo de Deus trabalhar em nossas vidas e não a cor da nossa pele”, ressalta Campos que resume o forte interesse da população negra em participar dos cultos da IARCA: “O propósito de Deus é quebrar o paradigma de que as denominações pentecostais estão longe de lugares referenciais. A bênção de Deus não está no local e sim nas pessoas”. “A igreja é multiracial! E a miscigenação precisa ser celebrada e não rechaçada”, defende Souza que cita a música “Alma não tem cor”, de André Abujamra.A Bíblia e os negros
O diálogo por meio de palestras com sociólogos, autoridades e líderes são para Zeidan a melhor maneira de enfrentar o preconceito racial. “Muitos pastores preferem não se expor. A negação dos fatos é mais confortável. A igreja tem que sair para fora e mostrar que em Cristo, não há grego nem judeu, nem escravo, nem livre, nem homem, nem mulher, pois todos somos um em Cristo”. O estudo das Escrituras é, segundo Passos, uma forma de reverter as conseqüências de uma “teologia baseada no racismo, na negação do outro, na exploração do homem pelo homem”. “A comunidade preta tem as suas próprias concepções baseadas na sua história ancestral, nas experiências e manifestações que são repassadas através das gerações. A Bíblia é composta de livros escritos por africanos e os fatos ocorreram na África, hoje denominada geograficamente de Afro – Ásia”, afirma o líder do CNNC.
Guido destaca Ebede-Meleque (ministro do rei de elevada classe social que ajudou o profeta Jeremias quando este foi lançado numa cisterna), a filha do Faraó (que adotou Moisés após tirá-lo de um cesto lançado no rio Nilo), e o eunuco de Atos dos Apóstolos (o primeiro estrangeiro a converter-se ao cristianismo) como personagens negros. “As escolas bíblicas devem resgatar a verdadeira história do papel do negro na Bíblia. O ensino bíblico a partir da concepção do negro e não daquele que foi forjado em uma sociedade excludente e racista”, avalia.
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